A
Anaspra convidou o antropólogo Luiz Eduardo Soares, considerado um dos
maiores especialista em Segurança Pública para falar sobre a
Proposta de Emenda Constitucional n° 51/2013 conhecida como PEC 51,
apresentada pelo Senador Lindbergh Farias. Luiz, carioca de 59
anos, foi coordenador Estadual de Segurança, Justiça e Cidadania no
governo Antony Garotinho e também Secretário Nacional de Segurança
durante o governo Lula e é considerado um dos principais
articuladores da PEC 51, que propõe um novo modelo institucional para
a Segurança Pública.
ANASPRA: Qual a ideia força da PEC 51/2013?
LES: Transformar radicalmente o artigo 144 da
Constituição Federal que define a arquitetura institucional da
segurança pública no Brasil. Portanto a ideia força da PEC é
transformar profundamente a estrutura da segurança pública que a
sociedade brasileira herdou da ditadura em benefício da sociedade e
dos policiais porque hoje ninguém está satisfeito com as
instituições que nós temos e com os resultados alcançados. É como se a
transição democrática não tivesse chegado até a área da segurança. O
Brasil mudou profundamente em todos os setores. Nesses últimos 25 anos,
mas na segurança, permaneceu estagnado: a lógica da defesa do Estado e
não da prestação de serviço à cidadania, continua prevalecendo. A
ideologia da guerra ao inimigo interno foi preservada, em lugar da ideia
democrática de que segurança significa garantia de direitos.
ANASPRA: "Nas ideias forças da PEC 51/2013, estão a
des militarização, desconstitucionalização, polícia de ciclo completo,
acesso único ou carreira única, e sindicalização. Fale um pouco acerca
de cada questão substantiva destas ideias centrais que indubitavelmente
afetará os profissionais da segurança pública, mais notadamente os
Policiais Militares e seus efeitos na prestação de serviços à
sociedade.
LES: Pois é todos os problemas estão na
continuidade da ditadura. Por isso, costumo dizer que a mudança
proposta pela PEC não é mais que a extensão tardia da transição
democrática à segurança pública. Veja: os policiais que fazem
o trabalho ostensivopreventivo ainda são militares, proibidos de
se organizarem em sindicatos. São tratados com regimentos
disciplinares absurdos e inconstitucionais. As praças continuam a ser
cotidianamente subestimados quando não desrespeitados como pessoas.
Cidadãos e trabalhadores. A estrutura militar os desautoriza bloqueando
sua indispensável autonomia profissional. A organização centralizada,
verticalizada e autoritária substitui o pensamento pelo cumprimento de
ordens. Além dos problemas que decorrem da natureza militar da
instituição. Ainda há os que derivam da dupla carreira que separa
praças e oficiais. São dois mundos distintos dentro de uma mesma
polícia. Como esperar coesão interna? Como esperar que os "debaixo" se
sintam estimulados e motivados, abraçando a causa de uma verdadeira
segurança pública democrática que respeite os direitos humanos de todos a
começar pelos direitos humanos dos próprios policiais? Como esperar que
essa polícia atue com equidade reconhecendo a igualdade de todos os
cidadãos perante as leis se ela não sabe o que é equidade internamente?
Por outro lado a polícia civil não é menos problemática. Também é
dividida em duas castas: dois mundos. Para piorar ainda mais a situação,
as duas polícias. A militar e a civil, que na prática são quatro.
Dividem ao meio o ciclo do trabalho policial: prevenção e ostensividade
para um lado; investigação para outro lado. Essa quebra do ciclo
policial é criticada por mais de 70 % dos policiais brasileiros. Não
funciona e nem pode funcionar. É como se num jogo de futebol um dos
times se dividisse ao meio: metade dos jogadores só poderia driblar e
centrar. A outra metade só poderia chutar a gol e cobrar escanteio e
lateral.
A zaga abriu espaço eu vejo o gol crescer à minha frente. Nesse momento
eu paro, espero um dos companheiros chutadores se aproximarem. Porque
cabe exclusivamente a eles o chute a gol. Mas eles não podem driblar,
nem quando surge a oportunidade.Parece e é uma piada. Mas na segurança
não é muito diferente. Quem vive o dia a dia das polícias sabe. E tanto é
verdade que as polícias não respeitam a divisão do ciclo e ora a
civil patrulha e faz blitz, ora a militar desloca o P2 da investigação
interna para a externa. Enfim, um absurdo que se soma a outros. E os
salários são indignos o que tem a ver com muitos fatores entre os quais a
duplicidade de mundos dentro de cada polícia e o veto à sindicalização
da PM por sua natureza militar.
Outro problema também originário do artigo 144 da Constituição Federal é
que a União assume pouquíssimas responsabilidades na segurança pública
e o município menos ainda na contramão do que ocorre em todas as
demais áreas importantes. Basta analisar como se estruturam a saúde, a
educação, a assistência social. União, estados e municípios dividem
responsabilidades em estruturas complementares. O que acontece hoje com
as guardas municipais é sintoma da quase ausência do município da
distribuição de atribuições na Constituição Federal. Por essas razões a
PEC-51 propõe a desmilitarização das PMS. O fim do ciclo dividido
de trabalho policial, ou seja, todas as polícias que existem ou
que venham a existir terão de operar em ciclo completo fazendo as
tarefas ostensivas e investigativas. Propõe também que a União assuma
maiores responsabilidades em vários campos da segurança como na formação
e na informação.
A preparação dos policiais hoje no Brasil é uma "Torre de Babel". Há
certas polícias esta duais que formam seus profissionais em um mês.
Outras em oito meses, por exemplo, e to dos têm o mesmo nome policiais.
Imagine isso na medicina ou na engenharia? O vale tudo é
injustificável! Na medicina existem várias especialidades, porém todos
os médicos fizeram um ciclo comum e têm uma formação básica
compartilhada não importando o estado em que estudaram, nem a
especialidade à qual se dedicaram. A União tem de criar um conselho
federal de educação policial no Ministério da Educação para
regulamentar e supervisionar a formação.
Além disso é indispensável enfatizar que a PEC 51 garante que nenhum
direito trabalhista será afetado pelas mudanças. Direito adquirido
será inteiramente respeitado. Como os estados brasileiros são muito
diferentes em todos os aspectos. Esta PEC propõe que desde que
se respeitem os princípios gerais (desmilitarização, ciclo
completo e carreira única), cada estado terá a liberdade de
escolher seu mo delo policial combinando dois critérios: territorial e
tipo criminal. Chamamos essa transferência de poder aos estados de
desconstitucionalização. Assim um estado poderia, por exemplo, criar
polícias civis municipais de ciclo completo e carreira única nos
municípios com mais de 500 mil habitantes e elas se dedicariam
exclusivamente às transgressões de pequeno potencial ofensivo. Este
mesmo estado poderia criar uma polícia civil de ciclo completo e
carreira única para atuar em todo estado contra todo tipo de
delito, menos de pequeno potencial ofensivo nas cidades com mais de
500 mil habitantes e menos o crime organizado que seria enfrentado
por uma outra polícia civil de ciclo completo e carreira única, a
qual operaria em todo o estado, exclusivamente voltado para enfrentar
esse tipo específico de criminalidade.
ANASPRA: É possível uma Polícia de Ciclo Completo Militarizada?
LES: Do meu ponto de vista não, e modo algum. Tratar a
abordagem ao cidadão. O patrulhamento, o trabalho ostensivo de uma
perspectiva militar me parece uma insensatez. que se choca com as
necessidades de um policiamento moderno e democrático. ele tipo
comunitário ou de proximidade orientado para a resolução de
problemas. Agora, atribuir a responsabilidade pela investigação a uma
instituição militar me parece mais do que insensatez, me parece uma
agressão direta aos direitos civis.
ANASPRA: E qual proposta para os Bombeiros Militares?
Cinco Estados ainda mantém o comando nas "mãos" do Comandante Geral da
Polícia Militar, ou seja, o Corpo de Bombeiros não é separado,
não possui autonomia administrativa, mais notadamente dos recursos
orçamentários. Então temos dois modelos. Um de independência dos
bombeiros que não mais se vinculam as PM e noutros Estados, separados.
Há alguma diferença ou tratamento dis pensado no caso do Corpo de
Bombeiros?
LES: Se as PMs deixarem ele ser militares e de serem
ligadas umbilicalmente ao exército como sua força reserva, conforme
diz o artigo 144 da Constituição Federal, elas não terão motivos para
comandar os bombeiros, pois estes não serão mais militares serão
civis e independentes uma decorrência natural da PEC-51, caso ela
venha a ser aprovada.
ANASPRA: Professor, uma das garantias na
aposentadoria dos militares estaduais encontra-se na paridade entre
ativos, inativos e pensionistas, com os militares da ativa. Esta é
uma das garantias que se vinculam, necessariamente, aos militares. Com
a proposta de mudança, estas garantias da paridade entre ativos e
inativos será mantida?
LES: Como disse antes, a PEC-51 é muito clara a
esse respeito. Ela diz explícita e enfaticamente, que todos os
direitos , sem exceção, serão integralmente respeitados. Nenhum
policial militar ou civil poderá ser prejudicado. Mudanças quanto à
aposentadoria, por exemplo, só poderão valer para quem for contratado
para as novas polícias que vierem a ser criadas depois da aprovação
da PEC-51, caso ela seja aprovada.
ANASPRA: Em que aspecto a organização militar das
polícias a torna mais e/ou menos eficiente para a realização das
ações de polícia no mo delo de ciclo completo?
LES: O melhor
trabalho ostensivo-preventivo acontece quando opolicial,narua atua
como gestor(a)nolocal da segurançapública.Issoquer
dizeroseguinte:opolicial vai ter de fazer um diagnóstico, observando
e analisando os dados coletados pelas instituições e por outros que
se dediquem à pesquisa de temas pertinentes naquele território,
estudando as situações, ouvindo muito a comunidade, dialogando,
identificando as prioridades. Com base nisso, terá de planejar ações
para as quais vai precisar da colaboração da comunidade local e de
outros setores do governo, além do apoio de sua instituição. Esse
esforço requer preparo interdisciplinar e liberdade para pensar e
agir. Claro que exigirá supervisão sobre tudo, independência, liderança,
capacidade de conquistar a confiança popular, abertura para o diálogo e
muita valorização do profissional que está na rua (valorização
salarial e educacional, moral e institucional), ou seja, o melhor tipo
de trabalho possível capaz de prevenir o crime e a violência. Não
apenas correr atrás do leite derramado. O melhor desempenho não é
possível em uma estrutura organizacional militar, centralizada e
autoritária. O melhor policiamento exige uma instituição horizontal,
flexível, criativa em que o agente na ponta participe ativamente e seja
visto e respeitado como aquele que é responsável pelo trabalho mais
difícil e mais importante.
ANASPRA: Como estão as articulações em prol da PEC 51/2013, seja no Congresso Nacional, com os trabalhadores e academia?
LES: Estamos trabalhando muito para que a PEC 51 seja
conhecida pelos profissionais de segurança pública e por toda a
sociedade. Acredito que a mobilização crescerá na medida em que PEC
for mais conhecida, pois a adesão da maioria será bastante natural,
penso assim porque a PEC 51 que se deve à coragem, aos compromissos
democráticos e a visão do senador Lindebergh Farias nasceu e eu dei
minha contribuição ao processo de amplas consultas aos policiais de todo
o Brasil, assim como a muitos outros setores sociais. Portanto acredito
que a maioria vai achar na PEC seu próprio desejo refletido. A PEC 51
não saiu do bolso do colete. Ninguém inventou a roda. Ela é fruto de
décadas de lutas de inúmeras lideranças policiais e de inúmeros
ativistas pelos direitos humanos.
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