MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 2010.004388-1
IMPETRANTE: JANISELHO DAS NEVES SOUZA
ADVOGADA: BELª ANA CRISTINA GOMES SILVA (OAB/RN 7.181)
IMPETRADO: EXCELENTÍSSIMO SENHOR GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
RELATOR: DR NILSON CAVALCANTI (JUIZ CONVOCADO)
EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO – POLICIAIS MILITARES – CARGA HORÁRIA DE TRABALHO – AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO – OMISSÃO LEGISLATIVA – POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DA REGRA INSERTA NO ART. 19 DO REGIME JURÍDICO ÚNICO DOS SERVIDORES CIVIS (LEI COMPLEMENTAR Nº 122/94) ATÉ A EDIÇÃO DA NORMA ESPECÍFICA – RECONHECIMENTO DA MORA LEGISLATIVA E DETERMINAÇÃO DE PRAZO PARA O SUPRIMENTO DA LACUNA – PROCEDÊNCIA DO MANDADO DE INJUNÇÃO.
Reconhecida a lacuna na legislação estadual no que diz respeito à regulamentação da jornada de trabalho de policiais militares, é possível a concessão de mandado de injunção para assegurar ao impetrante o cumprimento da carga horária estabelecida no regime jurídico a que se submetem os servidores civis, até a edição da norma específica.
Vistos, etc.
DECIDE o Pleno do Tribunal de Justiça, à unanimidade, em harmonia com o parecer do dr. Humberto Pires da Cunha, 14º Procurador de Justiça em substituição na 8ª Procuradoria, julgar procedente o mandado de injunção, nos termos do voto do Relator.
RELATÓRIO
JANISELHO DAS NEVES SOUZA, qualificado, por advogada legalmente habilitada, impetrou Mandado de Injunção com pedido de liminar em face do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado do Rio Grande do Norte.
Esclareceu ser Policial Militar, havendo trabalhado exaustivamente, sem a menor preocupação do Estado em regular a carga horária aplicável à sua categoria, conforme determinam as regras insertas no art. 42, § 1º, c/c art. 142, § 3º, inciso “X” da Constituição Federal.
Salientou que os Policiais Militares desempenham “jornadas rotineiras e exaustivas de 240 (duzentos e quarenta) horas mensais de trabalho ordinariamente aplicadas, ou até mesmo trabalho além dessa absurda carga em eventos como carnaval, festas juninas e etc., chegando até às 320 (trezentos e vinte) horas de trabalho mensal em alguns casos...”.
Asseverou, ainda, que “o Estado negligencia, fazendo os servidores disponíveis trabalharem além de uma limitação razoável de trabalho, ferindo, assim, o próprio princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, fundamento do Estado Democrático de Direito.
Ao final, requereu a concessão de ordem de injunção para que, por meio de integração legislativa (analogia), possa o impetrante submeter-se à jornada de trabalho prevista no art. 19 da Lei Complementar Estadual 122/94, até que norma específica seja elaborada pelo Poder Legislativo, com iniciativa privativa do Chefe do Executivo Estadual; ou, alternativamente, que sejam aplicadas extensivamente a toda a categoria de policiais militares do Estado do Rio Grande do Norte as normas da Portaria nº 204/09-GCG, até a edição de regra específica, considerando-se extraordinárias as horas trabalhadas além do limite nela estipulado.
Juntou à inicial os documentos de fls. 16/20.
A liminar requestada pelo impetrante restou indeferida, conforme decisão prolatada às fls. 23/25.
Às fls. 27/29, o Estado do Rio Grande do Norte, por intermédio de Procurador, apresentou manifestação, concluindo que “(...) a via judicial eleita pelo impetrante se mostra imprópria em face da inadequação do mandado de injunção para os fins propostos, já que não há nenhuma inércia de norma constitucional não-aplicável, que dependa de posterior normatização que lhe dê aplicabilidade”.
A autoridade impetrada, o Exmº Sr. Governador do Estado do Rio Grande do Norte, embora notificado, deixou transcorrer in albis o prazo que lhe foi oportunizado para ofertar manifestação.
Em parecer exarado às fls. 39/49, o 14º Procurador de Justiça em substituição na 8ª Procuradoria, dr. Humberto Pires da Cunha, opinou pela procedência da ação mandamental.
É o relatório.
Conforme relatado, a presente causa ocupa-se de pedido objetivando ordem de injunção para que, reconhecida a omissão legislativa quanto à regulamentação da jornada de trabalho de Policiais Militares do Estado do Rio Grande do Norte, possa o impetrante submeter-se à regra inserta no art. 19 da Lei Complementar Estadual nº 122/94, até a edição de norma específica.
É sabido que o mandado de injunção, a teor da regra inserta no art. 5º, inciso LXXI, da Constituição Federal, consiste em ação constitucional que objetiva colmatar lacuna legislativa, a fim de viabilizar o exercício de direitos e liberdades constitucionais, além de prerrogativas inerentes à nacionalidade, soberania e cidadania.
No caso presente, o impetrante valeu-se deste mandamus em razão da inércia do Poder Público em regulamentar a carga horária de trabalho dos Policiais Militares do Estado do Rio Grande do Norte, pretendendo, por tal motivo, a aplicação analógica do art. 19 da Lei Complementar nº 122/94 (Regime Jurídico Único dos Servidores Civis do Estado do Rio Grande do Norte), o qual limita a jornada de trabalho em 40 (quarenta) horas semanais, ou ainda, a extensão da regra contida na Portaria nº 204/09-GCG a toda a categoria de policiais militares, até que a norma específica seja editada.
Convém ressaltar, inicialmente, que a Lei nº 4.630/76 (Estatuto dos Policiais Militares do Estado do Rio Grande do Norte) é silente a respeito da matéria, e não há, na legislação estadual, nenhuma outra regra que disponha sobre o assunto.
Ademais, não há que se falar em auto-aplicabilidade da norma contida no art. 7º, inciso XIII, da Constituição Federal[1], assim como defendeu o Procurador do Estado do Rio Grande do Norte em manifestação às fls. 27/29, porquanto o art. 142[2] da citada Carta estabeleceu disciplina diferenciada para os militares, omitindo, quando remete ao citado art. 7º, aquele inciso que trata da jornada de trabalho, lacuna também existente no art. 31, § 14 da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte[3].
Assim, vê-se que há omissão legislativa quanto à regulamentação da jornada de trabalho dos policiais militares do Estado do Rio Grande do Norte, o que torna cabível o presente mandado de injunção com o escopo de colmatar tal lacuna, assim como decidiu o egrégio Tribunal de Justiça do Paraná quando do julgamento de caso semelhante, conforme ementa a seguir:
“ADMINISTRATIVO - SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL – POLICIAIS MILITARES. 1. LIMITAÇÃO DA CARGA HORÁRIA EM 44 HORAS SEMANAIS – (...) Não pode o Poder Judiciário legislar a fim de estabelecer a jornada de trabalho dos policiais militares. Ressalte-se que a omissão da legislação estadual no tocante a limitação da carga horária deveria ser objeto de mandado de injunção nos termos do art. 5º, LXXI, da Constituição Federal. É bem verdade que o tempo de escravidão já passou e incumbe aos próprios militares ter jornada de trabalho, observando um dos fundamentos que rege nosso Estado Democrático de Direito, ou seja, a dignidade humana (art. 1º, III, da Constituição Federal). Entretanto, tal regra deve ser feita pelo legislador e aplicável a todos os policiais militares de nosso Estado. Aliás, o que já realizado por outros Estados da Federação”.
(TJPR, Apelação Cível nº 612.449-0, Rel. Des. Lauro Laertes de Oliveira, j. 13/10/2009, ementa parcial) – grifos acrescidos
Na impetração, como já enfatizado, pretende o impetrante a aplicação do art. 19 do Regime Jurídico Único dos Servidores Civis do Estado do Rio Grande do Norte, até que a norma regulamentadora da jornada de trabalho dos policiais militares seja editada.
No que diz respeito à possibilidade de integração legislativa em sede de mandado de injunção, a jurisprudência mais recente do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL tem admitido-a, conforme arestos a seguir ementados:
“MANDADO DE INJUNÇÃO. APOSENTADORIA ESPECIAL DO SERVIDOR PÚBLICO. ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AUSÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR A DISCIPLINAR A MATÉRIA. NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO LEGISLATIVA. 1. Servidor público. Investigador da polícia civil do Estado de São Paulo. Alegado exercício de atividade sob condições de periculosidade e insalubridade. 2. Reconhecida a omissão legislativa em razão da ausência de lei complementar a definir as condições para o implemento da aposentadoria especial. 3. Mandado de injunção conhecido e concedido para comunicar a mora à autoridade competente e determinar a aplicação, no que couber, do art. 57 da Lei n. 8.213/91”.
(MI 795, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 15/04/2009, DJe-094 DIVULG 21-05-2009 PUBLIC 22-05-2009 EMENT VOL-02361-01 PP-00078)
“MANDADO DE INJUNÇÃO. GARANTIA FUNDAMENTAL (CF, ART. 5º, INCISO LXXI). DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS (CF, ART. 37, INCISO VII). EVOLUÇÃO DO TEMA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). DEFINIÇÃO DOS PARÂMETROS DE COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL PARA APRECIAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL E DA JUSTIÇA ESTADUAL ATÉ A EDIÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA PERTINENTE, NOS TERMOS DO ART. 37, VII, DA CF. EM OBSERVÂNCIA AOS DITAMES DA SEGURANÇA JURÍDICA E À EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL NA INTERPRETAÇÃO DA OMISSÃO LEGISLATIVA SOBRE O DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS, FIXAÇÃO DO PRAZO DE 60 (SESSENTA) DIAS PARA QUE O CONGRESSO NACIONAL LEGISLE SOBRE A MATÉRIA. MANDADO DE INJUNÇÃO DEFERIDO PARA DETERMINAR A APLICAÇÃO DAS LEIS Nos 7.701/1988 E 7.783/1989 (...)”
(MI 708, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2007, DJe-206 DIVULG 30-10-2008 PUBLIC 31-10-2008 EMENT VOL-02339-02 PP-00207 RTJ VOL-00207-02 PP-00471, ementa parcial)
Também admite a jurisprudência a aplicação subsidiária, aos militares, da legislação a que se submetem os servidores civis, quando omisso o regramento específico, a exemplo das seguintes decisões:
“ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. POSSE. PERDA DO OBJETO. CURSO DE FORMAÇÃO DE AGENTE DE POLÍCIA FEDERAL. PARTICIPAÇÃO. BOMBEIRO MILITAR. VENCIMENTOS.
1 - A posse do impetrante no cargo de agente da Polícia Federal não importa na perda do objeto do mandado de segurança que buscou garantir participação dele em curso de formação, sem prejuízo dos vencimentos do cargo de bombeiro militar que ocupava.
2 - Embora os bombeiros militares possuam regramento jurídico próprio (L. 7.479/86), possível a aplicação subsidiária da L. 8.112/90 a eles, quando omissa a legislação específica da categoria.
3 - A Lei Distrital 197/91, ao incorporar a L. 8.112/90 ao seu texto, não fez qualquer ressalva quanto às alterações posteriores, permitindo, assim, concluir que qualquer modificação dessa aplica-se aos servidores do Distrito Federal, desde que não lhe seja contrária.
4 - Apelação e remessa ex officio não providas.(20080111053068APC, Relator JAIR SOARES, 6ª Turma Cível, julgado em 30/09/2009, DJ 07/10/2009 p. 201)
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CORPO DE BOMBEIROS MILITAR DO DISTRITO FEDERAL. ORGANIZAÇÃO E MANUTENÇÃO. UNIÃO. LEI Nº 8.112/90. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. POSSIBILIDADE. LEI FEDERAL. RECURSO PROVIDO.
(...)
(...)
IV - Incide sobre a situação funcional dos bombeiros militares do Distrito Federal a Lei nº 8.112/90, porque, portando a União competência para legislar, com exclusividade, sobre o aludido assunto, nada impede a aplicação do regime jurídico dos servidores públicos civis da União, que é veiculado por lei federal, às hipóteses não especificamente previstas na legislação de regência e que com ela não conflite, qual seja, a Lei Federal nº 7.479/86”.
(TJDFT, Processo nº 20050020062705, Relator Des. NÍVIO GERALDO GONÇALVES, 1ª Turma Cível, julgado em 26/09/2005, DJ 17/11/2005 p. 64)
Nesse contexto, portanto, é de se conceder a ordem de injunção para assegurar ao impetrante o direito ao cumprimento de jornada semanal de trabalho até o limite de 40 (quarenta) horas, nos termos do art. 19 da Lei Complementar nº 122/94, até que seja editada norma específica a respeito da matéria, cuja iniciativa para a sua propositura cabe à autoridade impetrada.
Por fim, como bem ressaltou o Procurador de Justiça às fls. 48/49, não é possível a aplicação extensiva do teor da Portaria nº 204/09-GCG a toda a categoria de policiais militares, pois “(...) se assim decidisse, o Poder Judiciário estaria ocupando função que pertence ao Poder Legislativo, o que configuraria afronta ao sistema de separação dos Poderes (CF, art. 2º), além disso, cumpre registrar que o impetrante não fez prova pré-constituída sobre o conteúdo da referida portaria, sendo cediço que a via estreita do presente writ não comporta dilação probatória”.
Diante do exposto, em harmonia com o parecer ministerial, julgo procedente o presente mandado se injunção para assegurar ao impetrante, Janiselho das Neves Souza, o cumprimento de carga horária de trabalho de até 40 (quarenta) horas semanais, nos termos do art. 19 da Lei Complementar nº 122/94, até que seja editada norma específica a respeito da matéria, devendo a autoridade impetrada, no prazo de 150 (cento e cinqüenta) dias, encaminhar projeto de lei ao Legislativo regulamentando a jornada de trabalho dos Policiais Militares do Estado do Rio Grande do Norte.
É como voto.
Natal, 22 de setembro de 2010.
Desembargador AMAURY MOURA SOBRINHO
Presidente
Juiz convocado NILSON CAVALCANTI
Relator
Dr. PEDRO DE SOUTO
Procurador Geral de Justiça em Substituição
[1]“Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho (...)”
[2]Art. 142 (...)
VIII – aplica-se aos militares o disposto no art. 7º, VIII, XII, XVII, XVIII, XIX, e XXV e no art. 37, XI, XIII, XIV e XV (...)”
[3] “Art. 31. São servidores militares do Estado os integrantes da Polícia Militar.
(...)
§ 14. Aplica-se aos servidores a que se refere este artigo o disposto no art. 7º, VII, VIII, XII, XVII, XVIII, XIX e XXIII, da Constituição Federal (...)”
Fonte: APRA / APBM/RR
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