Revista Época: Pimenta na polícia dos outros é refresco
As greves de policiais militares foram, desde 1997, alimentadas por políticos que visavam abalar o governo de um partido adversário ou satisfazer os desejos de sua base eleitoral
O filme das greves da Polícia Militar, de roteiro previsível, começa com uma incitação a manifestações que possam prejudicar o governo de um opositor. Termina com o perdão a todos os envolvidos. Moeda de troca em tempos de crise, as promessas feitas costumam não se realizar. Isso dá ainda mais combustível para um novo embate político. E vem uma nova greve, apoiada por políticos adversários e condenada pelo governo do momento. Quando se entende o uso político que antecede movimentos desse tipo, fica mais fácil compreender por que policiais militares treinados sob o princípio da disciplina e do respeito à lei se rebelam por todo o país. Aconteceu nas últimas semanas e em duas ondas nacionais de protestos anteriores, em 1997 e 2001.
Em 1997, o movimento dos policiais militares alastrou-se a partir de Minas Gerais. Cabos, soldados, sargentos e subtenentes do Estado ficaram revoltados com um aumento dado pelo governo apenas aos oficiais da corporação, que detêm uma patente maior. A indignação levou cerca de 10 mil policiais à frente do Palácio da Liberdade, sede do governo mineiro, em Belo Horizonte. Houve troca de tiros, e um cabo foi atingido e morreu. Na negociação com os grevistas, o então governador, Eduardo Azeredo (PSDB), cedeu um aumento salarial de 48,2%. A concessão foi apontada como uma das principais explicações para o movimento ter se espalhado por outros 13 Estados. A outra, que viria com o tempo, foi a anistia.
Uma nova anistia era um cenário amplamente debatido na última semana, tomada por discussões sobre a legalidade de uma greve de policiais militares. A interpretação quase unânime é que, por seu caráter militar, tais servidores estão proibidos de cruzar os braços. A Constituição brasileira é clara a respeito. Diz, no artigo 142, parágrafo 3º, que ao militar “são proibidas a sindicalização e a greve”. Trata-se de um preceito legal totalmente justificável, já que tanto a segurança nacional – no caso de um conflito com outra nação – como a segurança interna – a necessidade de manter a ordem e a integridade física do cidadão – precisam estar protegidas de possíveis movimentos que impeçam seu funcionamento. Da mesma forma como um soldado do Exército não pode cruzar os braços diante do avanço do inimigo sobre o território brasileiro, sob pena de ser preso, julgado e condenado, um policial militar não pode abandonar seu posto e deixar o crime se alastrar. A Constituição ainda esclarece, em seu artigo 42, que os PMs e bombeiros “são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”. Como tais, não podem fazer greve.
“Às vezes, no Direito, há margem a dúvidas, mas nesse caso a Constituição é explícita”, diz o professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Pedro Estevam Serrano. “É justa a reivindicação salarial dos policiais, mas o meio que eles estão usando para reivindicar é abusivo, pois leva à morte de pessoas. O problema em questão não é meramente a remuneração de policiais. É a segurança institucional do Estado brasileiro. Ou os governos agem com rigor em relação a esses movimentos ou vai se instaurar uma anarquia. Aquele que detém o poder da violência vai acabar querendo passar por cima da vontade democrática da população.”
Os interesses políticos sempre encontraram um jeitinho, tipicamente brasileiro, de decidir contrário ao que manda a Constituição. Os 186 grevistas mineiros que foram expulsos da corporação por liderar o movimento de 1997 foram anistiados dois anos depois, pelo governador Itamar Franco (PMDB). Ganharam ainda projeção política. Cabo Júlio, o líder dos revoltosos, foi procurado por partidos e se elegeu deputado federal. Dirigentes de movimentos de policiais militares na Paraíba, em Alagoas e Pernambuco também se elegeram deputados estaduais.
Quatro anos depois, uma nova onda de protestos de policiais militares tomou conta do país. Começou na Bahia, então governada por César Borges (PFL), e se espalhou por outros sete Estados. Cenas dramáticas foram vistas em Alagoas, onde policiais dispararam tiros para o alto e chegaram a recomendar que turistas saíssem de Maceió, pois sua segurança não estava mais garantida. Naquele ano, o futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva costumava ficar do lado de todo e qualquer grevista. Lula e o Partido dos Trabalhadores defenderam o motim da PM baiana. “A Polícia Militar pode fazer greve”, afirmou Lula. “Minha tese é que todas as categorias de trabalhadores que são consideradas atividades essenciais só podem ser proibidas de fazer greve se tiverem também salário essencial. Se considero a atividade essencial, mas pago salário mixo, esse cidadão tem direito a fazer greve.” Discursos como esse agradavam aos policiais amotinados. Exatamente por isso, Marco Prisco, o líder dos grevistas preso em Salvador na semana passada, também um dos líderes de 2001, foi um entusiasta da candidatura do atual governador baiano, Jaques Wagner (PT), em 2006. “Consegui dois contracheques de policiais para ele mostrar na TV durante a campanha”, diz Prisco.
No ano passado, quando Wagner concorria à reeleição, Prisco emprestou sua militância ao peemedebista Geddel Vieira Lima, que acabou derrotado. Em depoimento veiculado pela televisão, disse que Wagner traiu os policiais de forma “desonrosa”. Apadrinhados por políticos, os grevistas de 1997 e 2001 foram anistiados por duas leis, uma sancionada por Lula, em 2010, e outra por Dilma, em 2011. Elas perdoaram infrações disciplinares e crimes do código penal militar cometidos por policiais desde 1997 até julho do ano passado, quando bombeiros do Rio de Janeiro foram presos depois de ocupar o quartel central do Estado. O texto legal chama greves como as que estão ocorrendo hoje de “movimentos reivindicatórios por melhorias de vencimentos e de condições de trabalho”, em vez de descrevê-los pelo que realmente são: levantes militares.
Diante da greve na Bahia, a presidente Dilma Rousseff mudou sua visão do que seria aceitável numa greve de policiais militares. Ao enviar tropas do Exército para forçar os amotinados a deixar o prédio da Assembleia Legislativa em Salvador, ela mostrou que há um limite para o que, no passado, eram considerados “movimentos reivindicatórios”. Chegou a reforçar o comando, depois que o general Gonçalves Dias se mostrou amável demais com os grevistas, ao aceitar, aparentemente emocionado, um bolo pela comemoração de seu aniversário. As gravações feitas pela Polícia Federal que revelaram a disposição dos líderes grevistas para executar ações criminosas, como o fechamento de rodovias, fizeram a presidente elevar o tom de seus pronunciamentos. Dilma se disse “estarrecida” com o comportamento dos grevistas e afirmou que “se você anistiar, vira um país sem regra”.
A greve baiana da semana passada também desvendou ligações entre grevistas e políticos do Rio de Janeiro. Uma gravação autorizada pela Justiça flagrou um diálogo entre a deputada estadual Janira Rocha (PSOL-RJ) e o cabo do Corpo de Bombeiros Benevenuto Daciolo, líder do movimento no Estado. Na conversa, feita em meio a uma negociação para encerrar a greve na Bahia, ela diz ao militante que é “errado fechar a negociação (na Bahia) agora antes da greve do Rio”. O deputado federal e ex-governador do Rio Anthony Garotinho (PR) também foi gravado numa conversa com Benevenuto. “Estou tentando costurar aqui uma posição do PR, PDT, PPS, PV e de outros partidos para obstruir tudo a partir de amanhã enquanto não votar a PEC 300 (que cria um piso salarial nacional para os policiais)”, disse Garotinho. Em outro momento da conversa, ele tenta se assegurar de que os policiais e bombeiros pararão as atividades no Rio. “O clima dá para parar, né?”, pergunta. O cabo responde que sim, como de fato foi decidido na madrugada da sexta-feira.
A PEC 300, a que Garotinho se refere, é outro motor das recentes greves de policiais militares, também exemplar da responsabilidade da classe política sobre os acontecimentos atuais. A proposta de emenda constitucional cria um piso salarial único para todo o país. O projeto foi apresentado em 2008 pelo deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) e recebido com entusiasmo pelas entidades representativas de cabos e soldados. Chegou a ser aprovado em primeiro turno, mas continua parado na Câmara. “Os policiais estão se mobilizando há anos para isso, mas o Estado e o Congresso não dão uma resposta sobre o projeto, nem negociam. Agora o problema estourou”, diz o cientista político Guaracy Mingardi, pesquisador da escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (leia mais a respeito da PEC 300).
Em 2010, Michel Temer, hoje vice-presidente e na ocasião presidente da Câmara dos Deputados, prometeu submeter a proposta à votação. Em campanha por mais um mandato de deputado federal, Cândido Vaccarezza (PT-SP) apareceu na televisão gabando-se de ter participado do texto final do projeto. “Eu quero me dirigir aos policiais do Estado de São Paulo e do Brasil. Foi feita uma campanha em torno da aprovação da PEC 300, que os policiais sabem do que se trata. E, como líder, eu tive um papel importante, de dar uma redação que fosse possível de aplicar”, disse. Em 2012, já eleito deputado e líder do governo na Câmara, mudou de discurso: “Temos de fazer uma discussão global sobre segurança no país. Agora, os salários têm de ser negociados nos Estados, e não no plenário da Câmara”. O roteiro do filme continua o mesmo: quem precisa de votos cede a reivindicações inviáveis e decreta anistias; quem está no poder tem de enfrentar a reação dos grevistas.
FONTE - REVISTA ÉPOCA / http://sargentoricardo.blogspot.com
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