Esta história é fictícia. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.
O pelotão de soldados alunos encontrava-se no pátio da Loucademia de Polícia. O tenente chefe de turma subiu num palanque ali existente e disse-lhes:
- Pracinhas, na próxima semana é aniversário do capitão coordenador da companhia escola. É uma data importante, e o nosso pelotão não pode deixar de dar algum presentinho para ele.
Os pracinhas acharam que seria somente um presentinho, como um par de meias, um chinelo ou algo assim. O que seria muito mais do que ele merecia, visto que desde o início do curso ele havia determinado que os pracinhas somente podiam passar pelo pátio da Loucademia correndo. Na verdade, o capitão não merecia era nada. Ninguém é obrigado a dar presente para ninguém.
Mas os pracinhas acharam que seria somente um presentinho para não deixar a data passar em branco. Já haviam presenciado tantas coisas estranhas na Loucademia, como escalas para participar de festas pagas por eles mesmos, nas quais eram obrigados a fornecer dez convites para o oficial chefe de turma, para que este levasse sua companheira e amiguinhos do coração. E, detalhe, o oficial chefe de turma não pagava nada pelos convites. Os pracinhas inclusive já haviam tido que financiar consertos das instalações da Loucademia de Polícia. Isso não seria de competência do Estado? Mas os oficiais da Loucademia sempre diziam que coisas como aquelas já eram tradição na Loucademia, e que ali sempre fora assim.
Realmente, apesar de já estarem no milênio trinta e um, sempre fora assim na Loucademia. O ciclo vicioso nunca fora quebrado. As vozes insurgentes sempre eram caladas por meio da perseguição. Aqueles que se opunham às idiossincrasias dos oficiais sempre eram colocados nas piores escalas e em atividades extras, sempre eram mais cobrados quanto aos comezinhos do militarismo; a farda deles sempre estava em desalinho; as piores funções (P1, P2, etc.) sempre lhes eram impostas. E, quando todo o pelotão era contra, as “ralações”/“sugas” duravam toda a noite e, às vezes, adentrava pela madrugada. Sem falar que muitos oficiais da Loucademia ministravam instruções para os pracinhas. E o pracinha precisa de nota para ser formar. E sempre existem aquelas matérias em que a nota depende muito do ponto de vista do professor, de critérios muitas vezes pessoais. Na redação, por exemplo, existem os quesitos subjetivos de pertinência ao tema proposto, argumentação coerente das idéias, informatividade, propriedade vocabular, etc. A avaliação dos movimentos de Ordem Unida depende muito do ponto de vista de cada aplicador. Da mesma forma como ocorre nessas disciplinas, a avaliação de outras também depende muito do ponto de vista de cada professor. E se o professor já quiser lhe punir… Enfim, o curso virava um inferno para as vozes insurgentes.
O tenente continuou:
- Pracinhas, eu decidi que devemos dar um noteebook ao capitão. Não vai ficar caro. Eu já fiz as contas. É só cada um desembolsar T$ 50,00 que dá pra comprar um dos melhores do mercado… Vocês não vão dar porcaria para o capitão, né.
Os pracinhas engoliram seco quando ouviram T$ 50,00 para cada um. Já eram tantas despesas e ainda vinha esse tal de presentinho para o capitão.Mas questionar poderia ser pior. Todos queriam se formar, e tinham aquelas disciplinas em que os oficiais da Loucademia eram instrutores. O capitão que iria receber o presentinho inclusive era instrutor de uma dessas disciplinas. A Loucademia, ou melhor, o Estado pagava bem aos professores pelas aulas, e os oficiais dali nunca quiseram abrir mão desse acréscimo no salário. Os pracinhas também sabiam das escalas noturnas e em feriados para vigiar banheiros, das atividades extras, das “ralações”/”sugas” que poderiam virar a noite…
Meio que engasgados, os pracinhas ficaram calados. Quem cala consente, e cada um desembolsou os T$ 50,00, dinheiro que foi passado para o P4, que comprou o noteebook, que foi entregue para o oficial chefe de turma, que, no aniversário do capitão, durante as tradicionais festinhas dentro de sala de aula, após a canção do parabéns pra você, entregou-o para o capitão coordenador da companhia, que disse baixinho no ouvido do tenente:
- Tenente, na minha avaliação para sua promoção, eu vou te dar nota máxima em todos os quesitos. Vou adiantar sua promoção nuns dois anos.
No momento da entrega do noteebook, era possível ver revolta e ódio nos olhos dos pracinhas. Revolta que não começou ali, as extorsões já haviam começado no início do curso, mas que a partir daquele momento aumentou ainda mais. Houve outras extorsões até a conclusão do curso. Muitos pracinhas disseram para si que nunca mais queriam pisar naquele solo sujo e podre daquela Loucademia de Polícia, embora muitos deles, em busca da promoção que lhes daria melhores salários, tenham voltado a pisar naquele solo.
Aquele solo sujo e podre, ao longo de seus milênios de existência, suscitou muita revolta e ódio nos pracinhas que nele pisaram. E ainda existem muitos oficiais, cadetes e alunos a oficiais que perguntam o porquê das divisões, que perguntam o porquê do ódio. A pergunta a ser feita não deveria ser onde surgiram as divisões, de quem elas partiram e o que suscitou o ódio?
Autor: Pracinha
Fonte: Blog do Pracinha/http://sargentoricardo.blogspot.com/
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